Públicos da cultura: que bicho é esse, moço?

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

Diversas áreas do conhecimento tratam do tema dos públicos da cultura, dentre elas destacam-se a economia, sociologia, antropologia, estudos culturais, letras (literatura), ciências da informação e da comunicação, ciência política, administração. O público é sempre concebido como um signo abstrato que aparentemente é conhecido. Este signo é um dado recorrente nos discursos de gestores de variados tipos de espaços, estabelecimentos e organizações culturais. As afirmações “meu público é exigente”, “meu público é de alto nível”, “as expectativas de meu público são altas” são comuns, porém elas são centradas no produto ou serviço prestado, sobretudo nos aspectos de função e preço. Estudos realizados na área incluem variáveis mais complexas como aspectos sócio-demográficos, geográficos, produtos e serviços culturais concorrentes, presença de turistas, elasticidade da demanda, sensibilidade aos preços, relações sociais, indicadores de qualidade, formação para apreciação, gosto.

Este post é uma continuação um pouco mais séria de "Arte baiana: um espetáculo para cadeiras e paredes". Eu citei a expressão "públicos da cultura" e achei que fiquei devendo maiores explicações e maiores problemas hehe. Só iscrarecêndo outra coisa: este texto não é artigo, não é ensaio, não é papper, é um monte de digressão... não seja um leitor exigente! :)

Eu sempre falo em cultura no blog... ainda não sou um especialista (who knows someday?!), eu diria que tenho mais curiosidades do que qualquer outra coisa. Falo de um tema que me interessa muito: os famigerados públicos da cultura (deve ter algo a ver com o fato de que eu faça produção cultural, trabalhe na área e pesquise especificamente os tais públicos haha).

Quando comecei, assim como os mortais, eu achava que aqueles chavões e narizes-de-cera da publicidade, programas de TV paga e eventos fechados, exclusivos para VIPs resolviam qualquer problema.

E como era de se esperar, aquelas frases feitas como "meu público é exigente", "meu público é selecionado", "meu público é de alto nível", "meu público gosta disso" não são exatamente confiáveis, são, no mínimo, equivocadas... inclusive os bons publicitários pouco recorrem a elas. Enfim, eu poderia encher milhares de blogs só com as frases feitas, que se acompanhadas de instrumentos musicais viram a perfeita forma para boi dormir. Elas são fáceis de usar e de compreender, mas não vão muito além disso... são fundadas em idéias discriminatórias, só pra início de conversa.

Primeiro porque, como já escrevi aqui, o público é um dado suposto. Não existe o público (nem mesmo os públicos). Ele é meramente analítico. Sobretudo porque não se consome por sobreposição e sim por justaposição. Outro ponto é que existem fatores sócio-demográficos (idade, gênero, renda individual, residência, escolaridade etc), fatores macro e micro econômicos que influenciam no consumo de um produto em detrimento do outro, mas isso não é uma via de regra, haja vista que se o nível de escolaridade, renda individual e conjuntura econômica, por inzêmprio, incidissem diretamente na freqüência de teatros, todos os com uma renda igual ou superior a um valor X (mais de 6 salários mínimos, digamos), graduados ou pós-graduados e com residência nos bairros mais centrais deveriam freqüentar e lotar os teatros... quantas faculdades temos em Salvador? Só aqui perto de minha casa são 5, dessas, três oferecem pós. Onde estão essas pessoas? Não sei... Por outro lado, aqueles em situação inversa não deveriam pisar em um teatro, mas basta olhar as malas diretas do Theatro XVIII e Teatro Vila Velha, exibidas com orgulho pelos seus timoneiros: tem muita gente de bairro afastado do centro e do subúrbio ferroviário que vai no Vila e no XVIII, inclusive para coisas mais experimentais.

Não vamos esquecer que a área cultural é uma fogueira de vaidades (pensando bem, qual não é mesmo?) e muita gente ama ser convidado, isso para não dizer que exige, detesta pagar ingresso... quem trabalha em bilheteria é quem sabe... Nessa fogueira de vaidades todas pulam: atores, diretores, produtores, gestores públicos, gestores privados, patrocinadores... e junto com eles os amigosdeles (falo por experiência própria: são as criaturas mais insuportaveis que há na face da Terra!). Fora que ser "pró-bretch" e curtir um teatrinho dá AQUELE status bonito, né?

Teatro acaba ficando exclusivo, no sentido mais literal da palavra: exclui sem dó. Por isso as pessoas gostam de ser tratadas como "um público exigente", "selecionado" e similares.

É uma ciranda do mal... onde estão os heróis-orixás da Bahia para nos salvar, me diga, essa menina? Será que teremos que recorrer aos X-men mais uma vez, coisinho?

Em geral, costuma-se associar, no ponto de vista de quem realiza, os tais públicos com o preço cobrado, serviço, produto ou bem oferecido, com um estilo de vida, por parte de quem o consome. No outro pólo, quem consome supostamente tem interesse em assimilar ou construir uma imagem baseada no produto, bem ou serviço (não vamos esquecer que o dono da imagem não é sujeito e sim objeto de sua própria construção... - SEMIÓTICA!!!!!! Não acredito que escrevi isso¬¬ - e mais do que isso, está sempre fornecendo insumos, dicas, pistas para ser decifrado e, em última instância, aceito em determinada roda).

Como explicar um “sucesso de público”, “um hit na temporada de espetáculos”, as vendagens de um disco ou de um livro? Os mais céticos dirão que aquilo que pertence à esfera dos sentidos e da criatividade, imaginação e arte não pode ser explicado, ou explicado por variáveis como a influência dos meios de comunicação de massa para promover a visibilidade ou invisibilidade dos objetos. Outros dirão que se trata do “fator sorte” dos promotores do evento, da banda que lançou o álbum, do autor que escreveu do romance.

Saindo da esfera do ceticismo, encontramos uma vertente que defende que o que molda o mercado da cultura é o gosto, definido como uma estrutura que parte das interações sociais entre os sujeitos membros de uma determinada comunidade, isto é, a partir das relações intersubjetivas, e possui duas dimensões: uma caracterizada pelos juízos estéticos e outra pela capacidade de assimilação, cultivo, aperfeiçoamento, formação e mudança. (LÉVY-GARBOUA e MONTMARQUETTE, 2002)

Na obra “A casa da Invenção”, Luís Milanesi (2003) articula que o circuito organizado de serviços de cultura está historicamente sustentado no triunvirato de tradição européia trazido ao país no período de exploração colonial, particularmente na transferência da sede da Coroa Portuguesa para o Rio de Janeiro: a biblioteca, o museu e o teatro.

Este modelo triangular que origina os circuitos culturais nas cidades em geral está voltado para si, de modo que as bibliotecas, os museus e os teatros não interagem com a urbe nem com aqueles que nela residem. Se estas instituições fechassem suas portas silenciosamente, poucos perceberiam. A quem estes equipamentos devem atender? Há um desejo pela publicização dos bens e serviços culturais, bem como ao acesso de produção desses bens, no entanto, percebe-se que estes espaços são incompatíveis com a necessidade do mercado no qual estão inseridos.

A biblioteca é, segundo o autor, “a mais antiga e freqüente instituição ligada à cultura”. Da noção de repositório do conhecimento humano, à Biblioteca de Alexandria, à infinita fonte de informações do conto de Jorge Luís Borges, às bibliotecas dos mosteiros; por fim, encontramos a partir da revolução francesa o ideal de publicização das bibliotecas, que deveriam ser espaços de criação e produção cultural, convivência e lazer, modelo aperfeiçoado pelo manifesto da UNESCO no pós-guerra em meados do século XX e por fim nos centros culturais franceses cujo modelo se proliferou por todo o globo.

As bibliotecas públicas encontram-se plasmadas na cultura como centros de referência em informação, o lócus de iluminação e desenvolvimento intelectual, de libertação da ignorância e insensibilidade, um direito de todos os cidadãos. Contudo, percebe-se que de modo que uma política pública não .

Os museus, por sua vez se configuram como "centros de preservação" da memória social, no entanto, estruturados em modelo pedagógico e que oscila entre a memória e o esquecimento (e parafraseando caro Benedict Anderson, se está na memória já foi esquecido e vice-versa... afinal aquilo que é exposto muitas vezes acaba se esgotando e se velando, já aquilo que é velado adquire um status de incômodo e não é esquecido nunca... inzêmprios também não faltam como a escravidão no Brasil e o Holocausto, o primeiro se esgotou e ficou velado e o segundo é discutido aos poucos).

Já o teatro... Ah, o teatro... ele, como muitas coisas do Brasil, começou na Bahia com a chegada dos exploradores europeus ainda no século XVI, por meio da realização dos autos religiosos praticados pelos padres jesuítas para os nativos e para os inscritos nas escolas. Durante o período de educação jesuíta, a celebração de datas comemorativas era acompanhada por apresentações de cunho moral e religioso, passagens bíblicas e parábolas cristãs. Não existia um equipamento que abrigasse os espetáculos produzidos, daí a sua realização em praças ou nos templos. Dado o contexto da época, era reservado às festas os momentos de convivência social nas cidades da colônia. Depois disso o teatro brasileiro se beneficiava das estradas de ferro e grupo itinerantes se apresentavam em tendas para pequenas cidades. Ressalto que em centros como São Paulo e a segunda capital, o RRRRRio de Janearoa, já tinham seus equipamentos, auditórios, salões etc. No entanto, com o fim das estradas de ferro, muitos grupos também pereceram.

curiosidade: Uma certa feita, vi um manuscrito do início do século XX escrito por um homem da cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Ele coloca os detalhes de um espetáculo (inclusive de alguns que ele ouviu dos pais e avós). Ele conta que não haviam cadeiras na platéia e que as pessoas levavam suas próprias poltronas e que, no tempo da escravidão, os senhores chegava a ser carregados pelos escravos durante todo o espetáculo. Era, como não deixou de ser, uma ocasião para ver, ser visto, dar opiniões e uma eventual oportunidade de participar de convivas.

Deixando de lado esta pequena revisão na trajetória do teatro no Brasil, principalmente quanto ao argumento da invisibilidade dos equipamentos culturais públicos na urbe, temos uma série de estudos que apresentam outros fatores que incidem diretamente no consumo cultural e na composição de um mercado cultural (formado pelo conjunto de públicos)

Um estudo da Ford Foundation (1974), do ponto de vista da economia, mostra que a demanda pelo teatro costuma ser inelástica ou rígida – ou seja, mesmo diante de variações de preço, a demanda se mantém estável – quando o espetáculo em questão é um grande evento ou o maior evento da temporada; neste caso, inclusive, os espectadores estão dispostos a pagar mais. Outro exemplo de inelasticidade é o mercado de obras raras e de bens de luxo. Já Felton (1992) identificou que o preço pode causar um impacto positivo nas demandas, invertendo a lei de oferta e procura. De acordo com o autor o preço em alguns casos é um indicador da qualidade.

Throsby (1983) foi o primeiro autor de tradição anglo-saxônica a incluir a qualidade como uma variável na demanda, sobretudo quanto à influência da crítica especializada na availação e descrição dos espetáculos. (Qualidade técnica, qualidade do texto, porte do grupo, porte da produção e se produção in locus/residente/estável ou não)

Lévy-Garboua e Montmarquette (2002) sugerem que as artes, sobretudo às artes performáticas ou do espetáculo, são bens de luxo, isto é, o consumo é proporcional ao incremento na renda do indivíduo, e que o gosto por consumi-las depende de como se deu a descoberta e a exposição no decorrer da vida do consumidor. Os autores trabalham com as teorias do rational addiction (Stigler e Becker, 1977; Becker e Murphy, 1988) e do learning by consuming (Lévy-Garboua e Montmarquette). Nos dois casos verifica-se a noção de um gosto cultivado, considerado por estes autores como senso que orienta os juízos a partir de experiências prévias, que molda os impulsos de consumo, por um lado como experiências de aprendizado e capacitação e por outro por escolhas orientadas por uma busca racional pelo prazer e pela repetição da experiência primária.


O inzêmprio que vou utilizar é um meio complicado, mas me acompanhem (ou pelo menos tentem): gastronomia natureba.

Radicalmente diferente da cozinha tradicional (principalmente para os ovolactovegetarianos) e ainda possui o charmoso diferencial de custar de 40 a 90% mais caro.

Pensemos então em dois indivíduos: o primeiro foi criado por uma família de ex-hippies e estudou numa escola dirigida por ex-hippies e alguns hippies remanescentes. Ele comia comida natureba desde bebê, e mesmo na escola o lanche era tofu e mel. Até os 5 anos nunca havia provado refrigerante, farinha de trigo branca, arroz branco etc. Com 12 viu o primeiro MCDonald's da vida. Era de se esperar que para ele o radical era o não-natureba.

Ele, contudo, tem consciência de que comer tubérculos, fungos, algas e sementes germinadas faz bem para a saúde, mas independentemente de ser bom ou ruim ele simplesmente come porque gosta das comidas naturebas e do estilo natureba de ser.

Já no caso do segundo sujeito, ele é bem convencional: era uma criança "normal", dava trabalho para comer, não comia feijão, carne, farinha... era doido por pizza, coca-cola, bombas de chocolate, batata frita. Para ele, o radical era o natureba...

No entanto, ele sabia que o melhor para a saúde era o estilo natural (ou pelo menos não tão junkie como era a dieta dele), mas ele não conseguia gostar de broto de feijão com broto de alfafa com óleo de gergelim torrado com limão e sal.

Viram? Gostar e reconhecer se algo é bom ou ruim são coisas distintas, mas muito distintas mesmo, não se enganem.

Seguindo no raciocínio, caso o sujeito 2 precise fazer uma dieta para emagrecer ou controlar colesterol ou por qualquer outro motivo, ele vai ter que se adequar a rotina natureba... em outras palavras, na sabedoria baiana, vai ter que aprender a gostar. E, sem muita escolha, é isso que acaba acontecendo.

Essa situação é válida para os dois casos. O gosto é algo cultivável, administrável em determinadas situações, podendo ser ou não orientado pela noção de certo e errado, mas definitivamente é algo impulsionado pela necessidade imposta pela situação na qual se encontra o sujeito. A pré-disposição é apenas um fator, o quadro externo outro conjunto de fatores como os valores partilhados em comunidade, julgamentos, imposições etc. De modo que o cultivo de um determinado gosto não configura "um público", mas pode-se analisar um determinado público por meio de seus gostos cultivados e tentar compreender seus movimentos.

Essa idéia de restringir a freqüência ou consumo de determinado produto apenas por um dos fatores condicionantes não procede... esqueça quem deixa o público solto numa frase só para enfeitar... e depois como eu já falei, é tudo ferramenta analítica... é tudo coisa da globo! Já diz minha avó que "coração de gente é terra que niguem passea"

chegamos num ponto nevrálgico:

E o que é um público cultural, tio?

São considerados públicos da cultura, efetivamente, aqueles coletivos que compõem a dimensão do consumo de bens e serviços de ordem artística cultural, analisados a partir de classificações em categorias e subcategorias e qualificados por perfis sócio-demográficos de acordo com gostos, práticas, hábitos e preferências semelhantes.

Para entender o que é esse negócio vamos adentrar na área de interface entre a estatística, comunicação e cultura (especificamente nos estudos culturais, estudos da recepção e da recepção estética). Implica também, em certa medida, no conhecimento da linguagem artística, produto, serviço ou objeto cultural que se pesquisa, inclusive diante dos princípios de gestão, funcionamento e processo criativo.

O interesse por esta questão envolve aspectos relacionados à vida política, as a articulação entre Estado, população e mercado da cultura (artistas e equipamentos culturais); a criação artística e determinados mecanismos de constituição e formação de públicos. Igualmente, diz respeito a hierarquia estabelecida entre “cultura elitista” e “de massa”, que distingue o “publico especializado” e o “grande público” a partir do posicionamento social. (MOUCHTOURIS, Antígone, 2003)

A investigação sobre os públicos (1) é uma prática corrente no campo da comunicação, especificamente em setores das indústrias de informação e entretenimento e também no campo da comunicação política. Agentes especializados desenvolvem, por exemplo, pesquisas de imagem, pesquisas de preferência, pesquisas de opinião e pesquisas de intenção de voto. Nos dois segmentos citados, percebe-se que a característica comum é a identificação dos mecanismos de tomada de decisão por parte do(s) público(s) com base na análise de amostras.

Trabalha-se com amostras por um lado porque é impossível de mapear todo o volume demográfico de eleitores ou de espectadores de um programa de televisão, e por outro porque não há a necessidade de fazê-lo, uma vez que em condições e realidades análogas os perfis também tende a ser similares ou a apresentar variações pouco significativas.

Mesmo que seja possível levantar o número de pessoas que assistiram a determinado programa, acessaram um sítio, assistiram a um filme nas salas de cinema, contabilizar a vendagem de um livro ou disco, conhecê-los, decorre, no entanto, do levantamento de dados mais preciso das amostras investigadas – obtidos de acordo com classificações generalizadas (por exemplo, por grupos: o público leitor, o público de cinema, o público de teatro) e específicas (subgrupos: idade, gênero, renda, posicionamento político-ideológico, classe social, dentre outras).

No campo cultural, especificamente no segmento das artes do espetáculo e dos equipamentos culturais públicos (teatros, salas de cinema, bibliotecas, museus, galerias, centros e complexos culturais), bem como centros de pesquisa acadêmica, esta prática ainda está por se desenvolver. Exemplos de iniciativas bem-sucedidas, neste sentido, são da Escola de Altos Estudos de Economia – HEC, no Canadá, DEP, na França, e do Observatório de Actividades Culturais de Lisboa. No caso do Brasil estudos na área foram desenvolvidos pelo Centro de Estudos da Metrópole, em São Paulo, pela Secretaria de Cultura de Minas Gerais e pelo Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura da Universidade Federal da Bahia.

Origens, origens, origens... vamos à "etinia da palavra"

O termo de origem latina – publicus – se reporta uma coletividade social que partilha algo em comum. O termo evoca a presença do indivíduo na esfera pública, situação na qual se renúncia voluntariamente a individualidade em detrimento de condutas que qualificam o sujeito: a (boa) conduta pública; e o bem maior da comunidade na qual ele se insere ou busca se inserir. (MOUCHTOURIS, Antigone, 2003, p.9)

Freqüentemente empregado em múltiplos contextos, igualmente se compreende por público tudo aquilo que circunscreve a realidade que afeta todas as pessoas de uma nação ou Estado, isto é, os negócios públicos e as leis públicas. Pode ser ainda entendido como toda a população de uma nação. Também se considera público tudo aquilo que é acessível, aberto, perceptível, material, aquilo que é feito às claras, o que é mostrado ou revelado em público; e, por fim, a uma instituição ou pessoa conhecida, uma figura pública.

Antigone Mouchtouris (2003) afirma que a constituição de um público específico depende da situação na qual o objeto cultural em questão é produzido e consumido, como operam certos mecanismos institucionais de mediação e pela aceitabilidade do objeto cultural, segundo critérios de afetividade intersubjetiva, financeiros e ideológicos.

O processo de formação de um público está associado à maneira pela qual cada indivíduo, em um contexto espaço-temporal determinado, voluntariamente se priva de sua individualidade tendo em vista uma experiência comum. Esta temporalidade transforma um grupo de indivíduos em uma unidade: o público, a platéia de um espetáculo de teatro, por exemplo. (MOUCHTOURIS, Antígone, 2003, p.14)

Este corpo indivisível, entretanto, mesmo durante tempo limitado à experiência, não é um monólito nem se produz a partir de uma condição de reciprocidade absoluta entre os membros, mas pela comunicabilidade das sensações, pelas referências comuns e por uma ou mais experiências partilhadas entre seus componentes. (MOUCHTOURIS, Antigone, 2003, p.14). Portanto, uma abordagem analítica ou mercadológica (ou uma combinação de ambas) depende do ajuste dos componentes deste corpo em categorias e subcategorias.

Em que momento um grupo de indivíduos pode ser qualificado como um público. O mero encontro ou apreciação ou uma cena da vida cotidiana são suficientes para qualificar um grupo como público? E, neste caso, qual a diferença entre público-espectador e testemunho-espectador? (MOUCHTORIS, Antigone, 2003, p.X)

Em contraposição ao público, o espectador – termo de origem latina, spectador, que significa “pessoa que olha o que passa” –, não se constitui pela renúncia voluntária da individualidade, e tampouco exprime uma qualidade própria ao sujeito: trata-se de uma entidade que mesmo pertencendo a uma coletividade, supondo a existência de laços orgânicos, não chega a compor uma unidade. (MOUCHTORIS, Antígone, 2003, p. 16) Esta entidade, por sua vez, configura a dimensão da audiência.

A oposição entre os públicos e a audiências é tradicionalmente explicada pelo aspecto público daquele e privado deste. Há ainda a diferenciação dos termos diante do tipo de conteúdo a ser consumido e das formas de consumo, em geral costuma-se relacionar audiência aos mass media. Identifica-se nos discursos, acadêmicos ou não, a idéia ordinária para a qual os públicos são assimilados como uma instância coletiva de atividade e negociação; e das audiências como pólo de passividade, ausência de questionamento e inação, principalmente diante dos processos de mediação.

Historicamente se atribui a audiência motivações individuais, egoístas, desinteressadas, emocionais, irracionais e sazonais, privadas em última instância; enquanto o público é orientado por uma razão consensual da comunidade, pelo bem maior compartilhado e pelo aspecto participativo. (LIVINGSTONE, Sonia, 2005, p.1)

Costuma-se delegar o estudo do espectador e das audiências ao campo de estudo dos media, comunicação e estudos culturais; e o estudo dos públicos pelas ciências sociais, políticas, filosóficas e culturais.

Gandy (2002) afirma que aqueles que partilham das teorias dos efeitos fortes da comunicação mediática atribuem às indústrias da informação e do entretenimento, em decorrência dos processos de mediação, a capacidade de converter o que deveria ser ou que já foi um público (a unidade participativa, o público-espectador) em um mero observador, testemunho-espectador, ou uma “massa” de consumidores, apreciadores do espetáculo. (LIVINGSTONE, Sonia, 2005, p.3).

Justifica-se este fato na ingerência do setor econômico nos provedores de conteúdo da indústria da informação e entretenimento, sobretudo diante da dependência dos anunciantes, por um lado. A “massa” de consumidores é qualificada em nichos de clientes e consumidores potenciais e, literalmente, negociada como moeda. Por outro lado, os provedores de conteúdo têm como objetivo alcançar o maior número possível de espectadores. Seria, portanto, através desta influência dos mass media, e sua lógica que orienta seus conteúdos a atingir (e agradar) o maior número possível de pessoas, que se constrói por vezes uma mudança de utilização do termo público para consumidor. O campo da comunicação massiva foi o primeiro a estabelecer padrões (standards) para práticas culturais para se ocuparem de seus públicos. A questão não era se ocupar do público strictu sensu, mas medir a audiência; o que se torna permanente. (MOUCHTORIS, Antigone, 2003, p. 23)

Esta linha desconsidera a participação ativa das audiências (e a capacidade de negociação, interpretação e atribuição de sentido das informações e dos conteúdos mediados) e da mediação dos públicos e da nova estrutura de publicidade. Mesmo se o observador é passivo, uma relação de comunicação se estabelece entre ele, o bem cultural e o criador no processo de apreciação.

A dimensão da recepção dos media como passiva, no âmbito da pesquisa acadêmica, a incorporação dos trabalhos de autores pós-modernos como Lyotard, Baudrillard, Sfez, Virilio e Maffesoli e a chamada “crise dos paradigmas” dos anos de 1980 levou a mudanças nas visões teóricas sobre comunicação, uma linha que conferia à comunicação “efeitos moderados” na recepção. Na década de 90, foram presentes os modelos de pesquisas interdisciplinares e qualitativas, principalmente em estudos de recepção, conhecido como “etnografia das audiências”. No entanto, as pesquisas sobre a cultura demonstraram que a sociedade poderia ser estudada não somente através da concepção política-ideológica, como os pressupostos da teoria da dependência indicaram, mas pela sua organização cultural. Os estudos sobre a cultura propiciaram novas reflexões sobre a comunicação social, enfatizando que os estudos da comunicação não devem ficar restritos à discussão ideológica ou econômica. (MOUCHTORIS, Antigone, 2003)

O receptor deixa de ser visto, mesmo empiricamente, como consumidor necessário de supérfluos culturais ou produto massificado apenas porque consome, mas resgata-se nele também um espaço de produção cultural; é um receptor em situações e condições, e por isso mesmo cada vez mais a comunicação busca na cultura as formas de compreendê-lo, empírica e teoricamente. Esse receptor é melhor percebido no mundo da cultura em produção, mais popular, em que a própria comunicação se encontra, daí surgindo novas chances para o encontro do sujeito. (MOUCHTORIS, Antigone, 2003)

Esta oposição, bem como os principais argumentos que a sustentam, é bastante reducionista. Basicamente, há cinco idéias acerca desta suposta oposição percebida nos trabalhos de Nick Lacey, que sustenta a idéia que a oposição entre públicos e audiência é meramente semântica e analítica, haja vista que eles representam o mesmo ente;

Mouchtoris (2003), que afirma que as audiências apenas emulam características do público; inclusive, que se priorizam as subcategorias. A conseqüência é que não se trata mais de um público, mas sim várias “categorias de público” o engajamento voluntário e ativo individual diante do objeto cultural se perde e se tem uma multidão que encontra os objetos de modo acidental.

Sonia Livingstone (2), da corrente dos estudos culturais, afirma que apesar das audiências conservarem algumas características do público, não são totalmente passivas, mas seu patamar é ambíguo, daí elas não passam de um proto-público; Daniel Dayan, menos pessimista, afirma que existe o quase-público, as comunidades e os fãs; e Jean-Pierre Esquenazi ratifica o caráter disperso das audiências e as classificam como não-público. (fonte: http://industrias-culturais.blogspot.com/)

David Thorsby (1994), no artigo “The production and consumption of the arts: A view of cultural economics” , analisa a trajetória dos estudos da economia da cultura sobre a produção e consumo de bens artísticos desde o lançamento do livro “Performing Arts – The economic dilema”, de Willian J. Baumol e Willian Bowen no ano de 1966. O potencial econômico do setor cultural já havia sido observado de maneira sistemática, à luz da teoria liberal, por John Galbraith em um ensaio publicado no periódico “Liberal Hour” em 1960. O economista britânico Lionel Robbins (1963) analisou o papel desempenhado pelo Estado no suporte dos circuitos artísticos, por meio do desenvolvimento políticas de financiamento a museus e galerias públicos. Peacock’s (1969) em seguida analisou os subsídios governamentais como extensão das políticas de bem-estar (welfare state) do Estado de Providência.

Segundo o autor, os modos de organização do mercado da cultura, conservando suas especificidades, são semelhantes a qualquer outro mercado. São também similares as formas de especificar e estimar as demandas, independente dos bens e serviços deste mercado se constituírem essencialmente como produtos de ordem simbólica, fruto da expressividade, sensibilidade e criatividade, a lógica do consumo é a mesma em relação aos bens de “primeira necessidade”.

Para além destes conceitos, deve-se observar que todo consumo é de certa forma cultural porque é norteado por uma racionalidade intersubjetiva. Comprar ou consumir são atos sociais, implica em se partilhar um código e incluir-se em uma comunidade simbólica. Isso vale também para os produtos essenciais: a indústria têxtil, por exemplo, dá origem a indústria da moda; e assim também segue a indústria alimentícia, a indústria de produtos de limpeza, construção civil. No caso específico do consumo de objetos artísticos ou culturais tudo depende do que o consumidor considera como arte.

Até a década de 1980, o modelo de estipular as demandas do mercado cultural era o da microeconometria básica e da teoria do consumo. Neste modelo primário eram observadas variáveis como renda individual e elasticidade do preço no intuito de compreender se os produtos artísticos e culturais eram ou não produtos de luxo, se as demandas eram elásticas ou inelásticas, se a arte tem produtos similares substitutos. Entretanto, investigar o consumo de produtos culturais – o que regula a tomada de decisão entre um produto e outro – implica em ir além destes pressupostos, uma vez que ele envolve aspectos como a experiência estética, heterogeneidade dos gostos, influência da sociabilidade (mediada, como faz a crítica especializada, por exemplo; ou pelas relações entre pares: amigos, cônjuges, familiares) na tomada de decisão ou na definição de um gosto como referência. Outra questão diz respeito a qualidade das obras consumidas e os quadros de referência de quem as consome, como elas são medidas e em que nível.

Os consumidores orientam sues gostos em outrem (na crítica especializada e nos amigos)? Na verdade a pergunta direta a um indivíduo sobre o porquê de sua freqüência a teatros, ou por sua preferência pelos textos de Shakespeare, as óperas de Puccini ou as pinturas de Manet se revela ineficiente, uma vez que a resposta é constantemente embasada em experiências pessoais que justificam seu gosto individual. Há condições sociais historicamente construídas que permitem que um gosto se desenvolva.

Em que sentido as políticas de acesso ampliam a apreciação e o cultivo de um determinado gosto?

Se por um lado algumas se sustentam na dimensão do financiamento, seja no subsídio da criação artística ou do consumo, por outro há medidas que visam a formação de apreciadores e basicamente associam a cultura e a educação, correlacionando atividades culturais na escola ou na realização de visitas aos teatros. A visita escolar ao teatro (como o caso de uma das linhas de atuação do FPI) é, para os alunos, uma prolongação do programa pedagógico: a escolha da peça se dá em função do tema estudado em classe ou vice-versa.

Embora a educação e a cultura não sejam assíntotas, a associação tende a reforçar, como fala Milanesi (2003), a imagem do teatro de cultura e não como diversão; o teatro habita a mesma zona do estudo e não do lazer. Ao reportar-se ao teatro, bem como atividades culturais elevadas, como um direito dos cidadãos, que é preciso “democratizar” o acesso ao teatro, na verdade se reafirma por um lado o caráter elitista do equipamento e das linguagens e por outro o coloca como espaço que assimila as relações de dominação.

Expressões como “todos têm o direito à cultura” implicam em contra-argumentações como “os desempregados têm mais necessidade de trabalho que de cultura”, apresentando as atividades culturais como bens supérfluos, reforçando a tensão de “utilidade” ou “inutilidade” de “cultura” para certas categorias sociais. (MOUCHTORIS, Antigone, 2003, p. 96)

Pouco se pensava em políticas públicas de cultura até pouco depois das revoluções tecnológicas e da revolução francesa e das profundas mudanças que estas promoveram, sobretudo quanto às reivindicações e os conflitos de classe. As políticas culturais de diferentes cidades se caracterizam por uma homogeneidade de modalidade de ações, que se apresentam, antes de tudo, como uma série de aportes fornecidos, sobretudo o financeiro, a produtores culturais. As políticas culturais são orientadas para a oferta. O Aporte a oferta se traduz por uma política de equipamentos e escolha dos atores sociais que atenderão as demandas. (MOUCHTORIS, Antigone, 2003, p.34).

No caso do Brasil, este pensamento ganhou fôlego após as duas Grandes Guerras no sul do país, no estado de São Paulo. Como medida de controle destas reivindicações as empresas criaram o chamado Sistema S e lançaram as bases para o que hoje é amplamente difundido como “responsabilidade social”. Efetivamente esta iniciativa é a assimilação dos pressupostos do Estado de Providência pela esfera privada. Na dimensão governamental o governo trabalhou primeiro com uma linha patrimonialista (que ainda vigora) e posteriormente passou a trabalhar com a noção de publicização dos bens culturais. Em ambos o ponto de convergência é o financiamento e o objetivo máximo é promover a “democratização cultural”, contudo, se ignora que “cultura” e “povo” como instituições indissociáveis, e em geral, tendem a se resumir como ações efêmeras.

Outra questão diz respeito a separação do “grande público” e do “público fiel”. O fato do “grande público” ser visto ora como vilão ora como vítima (sempre em níveis abstratos) nos leva a reconhecer em determinadas linhas da comunicação que crêem nos efeitos fortes da comunicação mediática, principalmente aquelas que se baseiam nas idéias pós-marxistas da Escola de Frankfurt e nas Teorias da Hegemonia, em uma “pedagogia das massas” incultas, supostamente ludibriadas pelo espetáculo e pelo emocional promovido pelas indústrias da informação e entretenimento.

Afirma-se o quão imprescindível é preservar as platéias do espírito romano das artes, do espetáculo imediato que não provoca reflexões de ordem política e social apresentado às massas, sustentando um status quo; e privilegiar o espírito grego, no qual o impacto e a reflexão diante dos contextos políticos e que fomenta questionamentos ideológicos e se distancia do espetáculo. A experiência comum não constituiria mais uma unidade (o público); as escolhas públicas são constantemente questionadas com base na própria oferta de produtos culturais e nos modos como os media configuram os padrões de recepção e consumo.

O consumo cultural, neste ponto de vista, se orienta pela distinção social e não como pela experiência estética. Mesmo reconhecendo que o fascínio pelo consumo de bens e serviços artístico-culturais, bem como aos espaços culturais institucionalizados, confere prestígio aos seus públicos. Isso se percebeu inclusive no processo da pesquisa: muitos entrevistados sentem-se constrangidos em dizer que pouco vão ao teatro, cinema ou museus. Alguns inclusive afirmam que “precisam ir mais ao teatro”.

A idéia do consumo de um produto cultural envolve um estímulo sensorial e de um quadro de expectativas e valores, de modo que não se pode “formar” um novo público apenas pelo contato com uma linguagem artística ou criar expressões de vanguarda. Só é possível compreender o aceitável e a recepção é apenas o início na relação que se estabelece entre apreciador e obra. Neste sentido, políticas de difusão ou pedagogia cultural não criam efetivamente novas platéias por que destoam das realidades dos supostos públicos aos quais se dirige o Estado ou uma instituição.

Neste sentido alguns pontos devem ser considerados quanto à função desempenhada pelo teatro nas sociedades grega e romana; ao status de arte que produtos expressivos da cultura ocidental assimilam a partir do século XVIII (e da transição nas formas de experienciar e consumir estes produtos); ao surgimento da arte moderna e da apropriação das técnicas de (re)produção em série que foi denominado de indústria cultural. Não se deve esquecer que após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a cultura incorpora o aspecto de direito do cidadão, principalmente relacionado às formas de publicização do acesso a produção e consumo dos bens e serviços expressivos – este processo tem início na revolução francesa, quando a alfabetização e os equipamentos culturais (principalmente a biblioteca e o teatro) entram agenda de interesses públicos.

A arte como identificamos hoje – expressão estética intersubjetiva – é um conceito que emerge em meados do século XVIII e se aprimora ao longo dos séculos XIX e XX. A origem grega do termo, Teknè, pode ser traduzida como técnica: um “saber-fazer prático”, façanha (atividade executada com excelência), como ciência, como oposição da natureza (ou Physys) e também como produção intelectual. O teatro, a escultura e a literatura, entretanto eram considerados como expressões poéticas e tinham como objetivo promover reflexões, fomentar discussões e desenvolver práticas democráticas, aperfeiçoar a cidadania e elevar o espírito. (MOUCHTORIS, Antigone, 2003). A democracia grega, como se sabe, não era igualitária e a condição de cidadania era restrita. Já na Roma Antiga, o teatro satírico (e popular) foi amplamente difundido e incentivado pelas instâncias governamentais, enquanto os espetáculos ditos “elevados” ficaram restritos a um elite política e intelectual, o marco entre a “alta cultura” e a “baixa cultural”.

A partir da Idade Média, as expressões poéticas, mais tarde conhecidas como “belas artes”, no período moderno, eram produzidas para o consumo de uma determinada classe social, de acordo com seus preceitos. Inclusive, galerias e bibliotecas eram equipamentos culturais privados, e os produtos que ali se encontravam não recebiam o nome de “obras de arte”.

Nesta época, entra em cena a figura do Mecenas ou o Patrono, indivíduo que financia a produção ou contrata o retratista (pintor), o diretor ou o compositor de óperas e sinfonias. É patente que as obras seguem uma linha de interesse (parcial ou totalmente) do seu financiador. No caso da literatura há uma diferença sutil: os “grandes” escritores deste período não dependiam do mecenas. Isso porque eles próprios eram herdeiros de fortunas, propriedades e até a Imprensa de Gutemberg, o custo de edição eram elevados e a produção era limitada, daí o status e o prestígio naqueles que liam e que possuíam uma biblioteca em suas casas. Ainda sobre a formação profissional dos artistas verifica-se também uma diferença entre os escritores e os retratistas, escultores e compositores. Para estes o aprendizado se dava também no modelo das “oficinas de ofício”, nas quais o ajudante se torna discípulo e domina a teknè do mestre, enquanto que para aquele a aptidão básica era o domínio da escrita por meio da alfabetização.

Neste período, os teatros eram espaços de convivência social, grosso modo, assistir a um espetáculo era uma experiência análoga a assistir a um capítulo da novela das oito. A principal diferença estava no tipo de engajamento (deslocamento espacial) e no fato de que ambiente de consumo era coletivo. Além disso, era um ambiente que acolhia a uma elite econômica, política e intelectual, sobretudo diante do surgimento da crítica da arte. No entanto, quando a arte torna-se independente e desenvolve uma lei própria, este consumo passa a ser norteado por outros princípios.

A idéia de “proteger” ou preservar o público, no sentido lato, da perversa indústria cultural e da comunicação massiva, opõe públicos e audiência, tomando o primeiro pela ação racional e o segundo pela passividade, recobrando no primeiro a esfera pública e no segundo a esfera privada a elimina. Na verdade, as duas estruturas se compõem do mesmo indivíduo e há mediação entre os públicos, haja vista as comunidades virtuais da internet, por exemplo, ou iniciativas como jornais e emissoras de rádio e TV comunitárias, e também uma participação das audiências, canais interativos como os blogs ou o sítio youtube, cujo slogan, inclusive é broadcast yourself (transmita você mesmo, numa tradução literal). Os anos de 1980 foram o ambiente da “crise dos paradigmas” e da corrente dos efeitos moderados dos media, principalmente em decorrência da incorporação dos trabalhos pós-modernos de Maffesoli, Baudrillard e Virilio, e no desenvolvimento dos estudos da recepção e da etonografia das audiências para além de uma discussão ideológica ou política .

Não se deve ignorar, contudo, o poder de visibilidade e invisibilidade que os media possuem – sobretudo porque o consumo domiciliar representa mais de 40% do consumo cultural. Salienta-se também que há ingerências dos setores financeiros nos provedores de conteúdo, principalmente em efeito da dependência do setor na venda de espaço para anunciantes, venda inclusive que é determinada pela classificação da audiência (dos espectadores) de acordo com hábitos, horários e também com o estabelecimento de perfis sócio-demográficos.

A dependência dos mecanismos públicos de financiamento da cultura – leis de incentivo fiscal, prêmios, editais, programas de patrocínio – tem como conseqüência um curioso fenômeno: os espetáculos encenados para cadeiras e paredes. As políticas públicas de cultura são norteadas pelo princípio de garantir o acesso igualitário aos bens e serviços artísticos. A cultura é assimilada como uma necessidade básica assim como a alimentação, moradia, educação e saúde. Neste bojo, a questão dos públicos é peça fundamental no financiamento público de um projeto cultural – haja vista um dos itens presente em todos os formulários de editais, leis de incentivo e programas de patrocínio: público-alvo.

Uma vez descritas as pessoas para as quais se dirige o projeto, o proponente faz uma estimativa quantitativa e define parâmetros qualitativos (pesquisa, avaliação de satisfação, freqüência). O problema desta questão é que há uma relação perversa e imoral que se estabelece entre proponentes e financiadores. O prêmio deve garantir o pagamento do elenco (no caso de uma peça de teatro), do diretor, do iluminador, sonoplasta, pagamento da pauta, impostos, produtor, assessor de imprensa, captador de recursos, material de divulgação. Os ingressos, uma vez subsidiados, custam um preço relativamente baixo na maioria das vezes. A surpresa é que os teatros continuam vazios. Os cinemas continuam vazios. As galerias continuam vazias. Não se cria ou diversifica o público, no máximo se fideliza aquele que já é assíduo em atividades culturais. A relação é perversa porque os subsídios dos espetáculos são pagos com impostos e não ampliam as opções de lazer e cultura da população, mas garantem o sustento de terminados grupos e empresas especializadas em assessoria e consultoria de produção cultural. É imoral porque o público é a peça central, a razão de ser, mas é ignorado. O espetáculo das artes continua sendo encenado para paredes e cadeiras vazias.



notas e referências
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1 De acordo com Teixeira Coelho, dada a diversidade do campo cultural e das múltiplas formas de consumo que dele decorrem, é mais adequado falar em “públicos” da cultura e não “público”, dada sua heterogeneidade. Optou-se também por este termo no plural para diferenciá-lo de outras acepções possíveis.

2 LIVINGSTONE, Sonia. On therelation with audiences and publics: why audience and public? Londres: LSE Research Online, 2005.

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