Carta para alguém do passado

segunda-feira, outubro 14, 2019

Curioso como as marcas do tempo se apagam. Um ano, dois, dez.... e se apagam em tudo: os lugares que costumávamos frequentar, as ruas onde moramos, as pessoas... de 2009 até hoje muita coisa aconteceu e se transformou. Eu amei você, eu fui amado por você e construímos uma vida juntos. Enfrentamos desafios juntos. Construímos uma casa do zero, depois reconstruímos essa casa e depois construímos outra. E hoje, tudo aquilo que vivemos parece ter sido um sonho (em alguns momentos pesadelo): são lembranças cada vez remotas. Pessoas morreram, outras nasceram, mudamos de casa, de bairro, até de cidade. Outras pessoas passaram pelas nossa vidas e habitaram os nossos corações. Aquele futuro que era um, virou outro, virou outros e se dilui com o passar dos dias.
Me choca saber que o lugar onde nos conhecemos não existe mais! Que onde tomávamos café da manhã não existe mais e nem volta aquele sábado de primavera em que fomos à praia do Leme. O tempo e a vida passam como um rolo compressor destruindo as coisas e quem fomos perde qualquer importância e os momentos, cada vez mais vagos, se descolam da realidade.
Outro dia desses passei pela nossa antiga casa e meu corpo reagiu, quase entrei no prédio porque fiquei no automático.
Nunca mais joguei videogame.
Nem jogos de tabuleiro.
O nosso mundo era bem seguro, sabia?
Depois da ruína, precisei achar um caminho para me reinventar. Só para descobrir que preciso fazer isso a cada dia. E a cada dia ainda dói um pouco. Não tenho raiva e nem arrependimento (nem do que começamos, nem do que vivemos, nem do que construímos e nem do que concluímos). Nem tenho aspirações de retomar aquela vida pregressa, nem com você e nem com mais ninguém. Passou, rasgou, feriu, marcou. A cidade é outra. Mas as marcas que eu trago nem o tempo apaga. Por um tempo quis que o mar levasse, aí o mar quase me leva junto.... porque essas marcas me fazem quem eu sou e delas não posso fugir.
Construí uma casa nova e tenho uma nova vida; ainda que assombrada por velhos fantasmas, ainda que habitada por velhos medos e alvo de forças que insistem em me paralisar.
Um dia ainda vamos nos encontrar, beber aquela garrafa (ou muitas) de vinho, vamos rir, chorar e lembrar. Dessa vez, sem mágoa, sem ressentimentos. Só com alegria e gratidão. Fizemos o impossível por inúmeras vezes. Aprendi com você a fazer do impossível algo tangível. E com você aprendi que nem mesmo fazendo o impossível se consegue impedir o fluxo da vida.
Talvez esse vinho estivesse em nosso futuro, mesmo aquele que foi dissipado (e que me deu aquela saudade).
Essa carta é para você e só você decifrará o que está escrito.
Amor nunca acaba. Mesmo quando acaba.
Tenho sonhado com você desde que passei pela nossa antiga casa. Isso é bom. Ja consigo pensar e falar em nós dois sem que isso me machuque.
A data de hoje é simbólica. E dela não esqueci e nem vou. Ja entendi isso.
Nem sei se você vai ler, deixo aqui escondido, além de cifrado.
São minhas confissões do prelo.
Seja feliz.