Dimensões da cultura e políticas públicas

domingo, março 19, 2006

É preciso compreender as dinâmicas de funcionamento da cultura para a construção de políticas públicas eficazes e capazes de movimentar, ou melhor, fomentar o circuito de produção, difusão e consumo cultural e o desenvolvimento social desde sua instância macro – aqui considerado todo o domínio federal – à sua instância micro – municipal/regional –, estruturadas a partir de uma dicotomia: a noção de cultura de acordo com uma ótica antropológica, que pressupõe a cultura como toda a produção e atividade humana, como “tudo aquilo que se opõe à natureza” (definição que a antropologia confere à cultura). Portanto, cultura seria “tudo”, seria uma espécie de “rocha” composta por diversos sedimentos interdependentes ou até mesmo independentes, resultado de práticas sociais cotidianas. Há também uma segunda acepção, apontada pelo viés da sociologia, segundo a qual a cultura está restringida à determinadas atividades e produtos especializados pertencentes ao campo das artes, relacionada principalmente a circuitos de produção e consumo de arte e cultura organizados (um mercado cultural) que movimenta, inclusive, as práticas rotineiras (que “pertencem” a antropologia), o que apontaria ainda para uma terceira noção: a do funcionalismo das práticas culturais.

Tendo em vista que a cultura por si só não se mantém enquanto atividade econômica, isto é, não gera receita, mesmo que esteja diretamente relacionada a toda atividade cotidiana - haja vista que ela não só permeia a existência humana como também pode ser considerada a própria existência, a dimensão profunda que orienta as nossas decisões. O circuito cultural não sobrevive no contexto atual se não houver amparo e articulação das leis de benefício e renúncia fiscal e empresas patrocinadoras, modelo este que tem seu centro nas secretarias de marketing, tornando uma condição sine quan non para a produção artística os interesses das políticas e estratégias marketing cultural de cada empresa no que tange a criação de imagem, identidade e marca ou até mesmo, em menor escala, como estratégia para aumento nas vendas diretas.É patente a força da cultura, seu potencial simbólico, retórico e do prestígio que é conferido a seus realizadores.

O fato de que a cultura seja detentora de um poder retórico quase imensurável àqueles que a ela se associem, justifica uma articulação entre as esferas mais amplas (governos federal e estaduais) e empresas para movimentar a atividade cultural: os resultados são concretos, tácteis e imediatos, os benefícios a priori são interessantes para todos os envolvidos, desde os agentes, produtores e gestores da cultura aos financiadores e mantenedores. De fato, os recursos estaduais com cultura são escassos, bem como qualquer outra área, porém, ainda não se compreendeu que a cultura (justamente por sua acepção antropológica) está contida em todas as esferas.

Mas, de fato, qual a importância em se formular políticas públicas de cultura?

Pouco se pensava em políticas públicas até pouco depois das revoluções tecnológicas e da revolução francesa e das profundas mudanças que estas promoveram, as reivindicações e os conflitos de classe, porém este pensamento ganhou força após as duas Grandes Guerras, principalmente, e posteriormente após a instauração do neoliberalismo, que pressupõe uma mediação entre cultura e sociedade civil legitimada pelo mercado, cujos principais suportes são as novas tecnologias de informação e comunicação (NTICs). No caso do Brasil, ainda durante a ditadura havia uma política cultural incipiente e voltada para os interesses militares (bem como em qualquer regime totalitário). O que aproxima essas duas realidades – a global e a local, brasileira – é justamente o poder, ou suposto poder, que a cultura tem no que cerne questões como identidade, nacionalidade, o que tange as tensões entre o local e o global, relações entre os sujeitos (o Eu e o Outro).

Um viés pelo qual se pensa e analisa questões como a da cultura é a “hierarquia” da produção artística: tem-se a cultura erudita (as belas artes), a cultura popular (cultura “de raiz” e o folclore) e a massiva, sendo a última desprovida de legitimidade haja vista que está sujeita exclusivamente aos interesses do mercado. Seria preciso, portanto, “fortalecer” a cultura popular (que é a mais “legitima”) nas tensões entre o local e o global, cada vez mais próximos devido a desterritorialização (promovidas pelas NTICs), e cada vez mais “a mercê” dos interesses e das lógicas neoliberais para que seja possível firmá-la. O que também implica em um pensamento preconceituoso e reducionista, porque, dentre outros motivos, as relações entre cultura e mercado datam da própria existência do mercado.

Um dado importante, e curioso, é que antes dos franceses, ninguém cogitou a idéia de buscar nos usuários/consumidores os motivos que os levavam a preferir tal produto ou tal prática em detrimento de outro, o que pode soar até incoerente, afinal como formular políticas públicas quando sequer se conhece as práticas dos públicos consumidores. Outro equívoco na elaboração e condução dessas políticas é o fato delas serem direcionadas a públicos que ou não são consumidores de cultura ou já consomem, em suma elas, mantém o status quo, mesmo que proponham mudanças.

A contemporaneidade ou, como aplica Martin-Barbero ao tratar do referido assunto, a modernidade tardia questiona essa dicotomia, porque “a separação que instaurava aquela dupla idéia de cultura é, de um lado obscurecida pelo movimento crescente de especialização comunicativa do cultural”, que passa a condicionar a produção, difusão e consumo cultural, a partir da modulação das matrizes culturais e dos consumidores. Por outro lado, o mercado assumiu (ao menos de maneira patente) a posição de mediador das práticas sociais (que nada mais são do que trocas simbólicas entre membros da mesma comunidade sócio-econômico-interpretativa). Há ainda, na tardomodernidade, no que diz respeito a essa “vida cultural” polarizada entre a noção antropológica e a sociológica, uma “confusão” entre conceitos, uma vez que toda essa vida cultural, na contemporaneidade é “antropologizada”, e as fronteiras teóricas e, com isso, precisar os limites entre ambas ou polarizá-las apenas implica em desviar as atenções e guia apenas por um campo analítico.

As políticas públicas devem respeitar as diferenças e diversidades culturais (trocas simbólicas, fricções, conflitos, intercâmbios), e deslocar-se o fomentador do posto de financiamento apenas, elaborar ações que permitam continuidade e avaliação, e que estejam presentes em todos os campos da sociedade.

O que é e qual a importância de uma política pública?

São ações conjuntas promovidas, na maioria das vezes, pelo Estado, de forte caráter intervencionista e que busca mobilizar por meio de ações diferentes setores da sociedade civil para determinada questão ou problema e posteriormente transformá-lo, gerando (pelo menos em modelo ideal) desenvolvimento.

A formulação dessas políticas deve passar obrigatoriamente pelo reconhecimento do problema – reflexão sobre o tema, suas implicações, sua importância – e de quais ações podem ser implementadas para provocar mudanças essenciais e “resolver” os problemas; há ainda a definição de estratégias de ação e a implementação, ou seja a intervenção propriamente dita, além da avaliação.

O sucesso ou fracasso de uma política pública, dado seu aspecto sumariamente complexo, depende basicamente da articulação entre governos, empresas e sociedade civil (pluralismo); de fato, quanto maior for o número de atores sociais envolvidos na ação, os diferentes pontos de vista serão confrontados e as decisões serão tomadas de modo mais democrático e a intervenção não se dará de modo vertical, paternalista, superficial, ou algo como uma medida emergencial.

Verifica-se, no atual cenário nacional, uma forte procura da sociedade civil (sobretudo artistas, produtores, gestores e demais agentes) para que a cultura figure na pauta política nacional. A cultura é compreendida como elemento de altíssimo poder de integração de um povo porque está arraigada em fatores como identidade e nacionalidade, costumes, valores, memória (coletiva ou individual), haja vista que o sujeito é fruto de sua respectiva cultura sendo influenciado e influenciando, transformando e sendo transformado constantemente por ela; há ainda o forte potencial de geração de economia e turismo, pela criação imagética de determinado povo ou lugar e, claro, o prestígio que ela possui, principalmente com relação a produções artísticas e culturais (música, teatro, dança, manifestações diversas, literatura).

Em seu “Dicionário Crítico de Política Cultural”, Teixiera Coelho apresenta os principais conceitos para se compreender e (re)formular as políticas públicas na área de cultura, e, dentre outras coisas, identifica erros, muitas vezes crassos, na condução das atuais políticas, aponta ainda falhas nos modelos antigos e contrapõe (mesmo que de forma simplista) modelos atuais (como quando compara França e os Estados Unidos da América).

Segundo o próprio autor, uma política cultural seria “o conjunto de intervenções dos poderes públicos sobre as atividades artístico-intelectuais ou simbólicas de uma sociedade, para além da política de educação ou de ensino formal”. Atuando por meio das leis de incentivo e renúncia fiscal, dos investimentos estratégicos e mediando ações “práticas”.

A máxima de todas as políticas culturais é ““democratizar” a cultura”, porém essa frase, bem como “levar cultura ao povo” ignora que “cultura” e “povo” como instituições indissociáveis, e que o “povo” também é agente de produção cultural. Em geral, as políticas públicas de cultura tendem a se resumir como meras ações efêmeras.

A política cultural deve eliminar ou diluir os pólos de produção e consumo, fomentando cada vez mais novos agentes, que por sua vez serão consumidores mais fiéis do mercado cultural, “democratizar” a cultura é também permitir que todos possam produzi-la.

Antes de se pautar a cultura na agenda política nacional é preciso refletir as reais necessidades e reais necessidades que tal setor envolve e evitar que, por conta de uma concepção, muitas vezes, errônea da cultura, ocorram injunções das secretarias de marketing das empresas nas decisões referentes ao campo cultural, ou até mesmo pela procura de artistas, produtores e demais realizadores da cultura, e se compreenda a política cultural, a política pública de cultura, a uma política de financiamento por meio de de renúncia fiscal, por fortalecer ou atender a uma parcela mínima ou ainda por ratificar o isolamento e a distinção entre a cultura (“cultura de elite”, “cultura popular” e “cultura massiva”).

Lucas Lins

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Para aprofundar o assunto, recomendo o artigo da professora e pesquisadora paulista Isaura Botelho "Dimensões da cultura e as políticas públicas", o livro de Teixeira Coelho "Dicionário Crítico de Política Cultural", o aritgo do professor baiano Albino Rubim "Dos sentidos para o Marketing Cultural", e os livros "O Mercado da Cultura em Tempos (Pós) Modernos", da professora e pesquisadora Gisele Nussbaumer; "Cultura e Atualidade", organizado por Albino Rubim; "Organização e Produção da Cultura", organizado por Linda Rubim; e o "Guia Brasileiro de Produção Cultural 2004", de Edson Natale, Cristiane Olivieri.

1 comentários:

George Brito disse...

Cara, seu blog está muito irado. Preciso de uns toques. Hehehe. Depois falo sobre o texto. Abs.