Um pouco sobre democracia

quinta-feira, junho 01, 2006

Bom, estimados senhores, este texto que vos apresento foi escrito por mim enquanto tentava responder uma das inquietações do meu curso de comunicação e polítca da Faculdade de Comunicação da UFBA ministrado pelo professor Wilson Gomes. Trata-se de uma tentativa de resposta a uma pergunta feita em sala, na última terça-feira, mas não sei se de fato respondi ou se terminei por encontrar mais e maiores dúvidas e inquietações. No mais fica aqui para compartilhar as dúvidas, inquietações e incertezas.
Democracia é um regime de governo estruturado, em princípio, a partir de uma igualdade entre todos os indivíduos que compõe uma comunidade ante um sistema de leis e no qual todos os sujeitos democráticos – sujeitos de direito, cidadãos – participam e governam a si próprios, sendo que cada um possui uma cota de poder. A democracia foi um conceito grego – Demos (povo) e Cratos (Governo) – resgatado pelos burgueses na França do século XVIII no intuito de legitimar a tomada de poder durante a Revolução Francesa, quando a aristocracia, que detinha o controle da esfera de decisão política, é substituída pela burguesia, que detinha o domínio dos meios de produção e ampliava seu poder econômico à medida que a aristocracia se empobrecia, e o sistema monárquico é substituído pelo republicano.
Um governo democrático pressupõe, ao contrário de um regime de natureza autoritária, que haja prestação de contas acerca da coisa pública, isto é do bem comum, bem de todos os membros da comunidade (seja uma cidade, estado ou nação), porquê enquanto neste há súditos, naquele há sujeitos, sujeitos que autorizam a tomada de decisões e execução do governo, seja na questão administrativa ou no âmbito legal, enquanto na aristocracia a priori não há a menor possibilidade de interferência do povo, o Estado é autônomo e é sua autonomia que produz as leis. O poder político, então, emerge do próprio povo, e não decorre de uma escolha divina, ou do mero direito natural, portanto é no conceito de democracia que se incide a idéia de soberania popular, haja vista que se todo poder emana do povo, é o povo quem controla seu próprio destino, tornando a esfera de decisão política mais próxima da esfera civil.
Enquanto na aristocracia as decisões tomadas são veladas, na democracia elas devem ser desveladas, e devem ser resultado da prática da razão, do discurso e do confronto de idéias, do debate público, na esfera de visibilidade pública – representada na contemporaneidade pelos media – sendo que a decisão final a ser tomada se constitui como um resultado desse debate, das concessões, das negociações e retaliações, do convencimento, preservando a vontade da maioria, contudo preservando também a oportunidade da minoria – compreendida aqui como minoria política e não demográfica – que também por meio da retórica pode converter-se em maioria política.
Um governo democrático deve ainda preservar o indivíduo do Estado e da própria sociedade, deve libertar, proteger e permitir Democracia possibilidade de fala, mesmo que sua voz seja dissonante (a liberdade de imprensa, proibição da censura prévia etc).
Porém, quem constitui os membros da esfera de decisão política? Basicamente há dois tipos de democracia: a) democracia direta, e b) democracia representativa. O primeiro supõe uma intensa participação de todos os concernidos na tomada de qualquer decisão e uma espécie de assembléia constante, sugerindo portanto uma participação compulsória e de certa forma infringindo uma das premissas democráticas que é liberdade de escolha, participa da EDP quem quer, quando quer. O segundo se caracteriza pela delegação, pela entrega das cotas de poder feita pelo cidadão para que outro represente seu interesse. A democracia representativa pode ser compreendida também em dois “subgrupos” , o da democracia de base ou republicanista, que se entende como uma democracia “de base” na qual os sujeitos de direito passam a tentar resolver seus próprios problemas, ou melhor, tendem a tornar privados pequenos problemas públicos. O republicanismo, devido a sua origem liberal, daí a tendência a minimizar a influência do Estado, também está relacionado à idéia de soberania, aos bens comuns, às virtudes cívicas, à convivência em comunidade, na organização de redes de relacionamento para melhorar as condições de vida sem o auxílio direto do Estado. Já a democracia de esquerda é um viés teórico das esquerdas européias e relaciona diretamente o regime de governo ao sistema econômico, e uma possível relação incestuosa entre ambos, considerando a democracia como um democracia de classes e está fundamentada em três princípios: a mobilização, conscientização e organização.
Este quadro, brevemente apresentado, compõe um imaginário da democracia contemporânea.
Sabe-se que a democracia como a conhecemos hodiernamente têm suas bases no final do século XIX e metade do século XX, com as lutas das classes operárias e pelo movimento do sufragismo universal, principalmente. Isso porquê o pressuposto da oportunidade da fala dissonante, que preserva as minorias, e o princípio de igualdade de todos perante a lei na gênese da democracia, ou seja no século XVIII, era exercida por poucos, por homens, liberais, a partir de uma determinada idade, com um dado nível social e intelectual, privando mulheres e operários por exemplo de participar do jogo político e das decisões políticas, tornando um direito na verdade um privilégio.
Como o imaginário costuma ser mais forte do que as práticas, e os temas da igualdade e da soberania popular ali se encontram, foi uma questão de tempo para que se questionasse a prática, e como essas pessoas estavam excluídas do debate político lhes restou apenas a opção pelas ações reivindicatórias em busca do Estado de Direitos: greves, passeatas, manifestações diversas, no intuito de pautar esses novos interesses nas esferas de visibilidade pública e esfera de decisão política e tornar a democracia algo mais justo.
É nesse bojo que surge na contemporaneidade um conjunto de idéias errôneas e pequenas falácias entorno da democracia e usos metafóricos do termo atrelado ao modelo democrático da esquerda (sobretudo a esquerda mais radical), que ignora princípios como pluralismo, diversidade e características do jogo político como a negociação, conflito, competição e cooperação e ainda se atém ao modelo reivindicatório de conflito de classe e de busca pela hegemonia.
Em primeiro lugar a palavra democracia, depois de quase meio século de regimes autoritários, virou sinônimo de justiça e altamente legitimado: é preciso democratizar o ensino, democratizar o emprego, os meios de produção, porque democracia é sinônimo de justiça, sobretudo de justiça social. Será mesmo?
Democracia é um regime de governo, não se deve esquecer disso, se aplica uma característica democrática (a igualdade em oportunidades) para diversos assuntos que a priori não pertencem ao campo, podem até ser concernidos, mas não influem de maneira direta. Por exemplo, uma ocupação das Forças Armadas em um morro do Rio de Janeiro fere a democracia? A violência implica em anti-democracia? As forças armadas são legítimas quando feitas pelo Estado no intuito de proteger-se a si e ao conjunto de cidadãos, nesse sentido o Estado monopoliza a força impedindo que um cidadão machuque outro, por exemplo.
Segundo porque a democracia é o regime das vontades, e da vontade da maioria, é nisso que ela se diferencia do autoritarismo, porque neste sistema a vontade que importa é a vontade do Príncipe, portanto a vontade da maioria nem sempre será justa.
Aliás, na literatura encontramos diversas metáforas ao elogio da democracia. Em Memorial do convento, de José Saramago, a palavra vontade é um fio condutor do romance. A personagem Blimunda, uma das mais famosas e emblemáticas personagens de toda a literatura portuguesa possui o dom de enxergar por dentro das pessoas e é justamente dentro das pessoas que se encontram, encerradas em nuvens fechadas, as suas vontades. Essas vontades eram necessárias para fazer voar a passarola, engenhoca projetada pelo padre Lourenço (referência de Saramago ao teórico português Eduardo Lourenço, autor de Nós e a Europa). Enquanto isso, na coroa, o rei, por conta de uma promessa feita ao clero, anuncia a construção do araônico Convento de Mafra, que consumiria ainda mais de 100 anos até esta concluído. Justamente neste ponto saramago faz seu elogio. A vontade de el-rei impôs a construção de um convento, mas foi a vontade do povo que fez algo muito maior: alçou o vôo da passarola, porque a vontade da maioria impulsiona e legitima, é feita às claras, é mais forte, enquanto a do rei, por ser velada, perde sua força. è preciso que as vontades se libertem para que algo seja efetivado.
Na democracia o diferencial é que justamente o processo de tomada de decisão deve ser feito às claras, na esfera de visibilidade pública, e há a possibilidade legal de interferência dos concernidos, contudo, em terceiro lugar, não se deve assimilar uma decisão democrática como superior à autoritária. Há possibilidade de uma boa decisão autoritária e de uma péssima decisão democrática.
Ainda, o iegal não significa anti-democrático. O democrático é o Estado e suas instâncias e tudo aquilo que se relaciona à república, ao bem de todos. Embora se saiba que o estado de direito nunca é de 100%, ainda existem sujeitos à margem, ainda há a voz dissonante, outrossim em todos os segmentos sociais, uma vez que a vida social não é uma prática agélica, bem como a política também não o é. A justiça fica a cargo de um poder específico, o judiciário, que aplica e fiscaliza a aplicação das leis.
Há na democracia maiores possibilidades de diálogo e acesso, mas isso não implica imediatamente em promoção da justiça ou ainda democracia sempre é ou deve ser justa.
Quanto à ética e à moral podem indicar falhas, pequenos erros, mas não resolvem. O próprio imaginário constrói-se a si.
Tomo a liberdade de sugerir alguns livros que utilizei como referência para escrever este texto (uma inquietação levantada pelo professor Wilson em sala de aula), valeu pelo toque, George!
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GOMES, W.G. Transformações da política na era da comunicação de massa. São Paulo: Paulus, 2004.
GOMES, W. G. Comunicação e democracia de massa: problemas e perspectivas. (pdf)
HELD, D. Models of Democracy. Stanford: Stanford University Press, 1986. Second edition.
RUBIN, A.A.C. Espetáculo. In: Cultura e atualidade. RUBIN, A.A.C. (org). Salvador: Edufba, 2005 (Sala de Aula 2)

2 comentários:

Anônimo disse...

Lucas,

Seu texto trouxe muitos pontos abordados por Wilson Gomes (as características da política parece ser uma reflexão dele, por exemplo), acho que seria justo você dá os créditos ao professor, poderia informar, por exemplo, que a matéria Comunicação e Política a qual você cursa é ministrada por ele. Quanto à democracia, achei muito bom o texto, mas senti falta de você destacar que na democracia moderna o que carateriza de fato o regime democrático é o "parlo", o argumento, portanto, a presença do parlamento, do Congresso, do poder legislativo, sobretudo. E dentro disse poderia dizer também que apenas as eleições não garantem a democracia. Na verdade, a democracia é referente ao processo de decisão política e não ao método de escolha do líder. abraço.

Lucas disse...

Essa foi uma indagação levantada por Wlson Gomes durante a aula da última terça-feira e o texto uma tentativa de resposta, é um pouco do fichamento dos livros "Transformações da política na era da comunicação de massa" e "Modelos de democracia", de David Held, apontamentos das aulas e algumas considerações mais pessoais. Mas agradeço pelo toque, vou colocar as referências.
Agradeço pelas dicas, aliás, se você quiser complementar o texto ou até mesmo questionar e refutar, eu abro espaço aqui (ou você publica no eu blog e eu deixo o link aqui). Abraço. Lucas