Apesar do título, não vou discorrer sobra a obra de Calvino, mas algumas coisas dela vão me servir.
Sim, é nas madrugadas que as palavras vêm com maior freqüência e maior força... talvez seja o efeito do conflito sono X sonho X vigília... a eterna luta na guerra da insônia!
Hoje (ainda estou no dia 20, só é 21 depois que eu dormir!), tive a oportunidade de avançar em um trabalho que desde o início deste ano eu tenho burilado e flertado bastante: o trabalho em comunidade. Acho que tudo que eu já fiz (leia-se o Circuito Baiano de Samba de Roda e o Projeto Cordel do Pega Prá Capar) é bastante ligado à questão das ações na/da base, mas hoje eu pude conhecer uma experiência de uma associação comunitária daqui da cidade em um bairro violento e cujas situações de risco e vulnerabilidade social são bastante preocupantes. Este trabalho foi o desdobramento de uma consultoria que eu dei para uma instituição de ensino superior e para um trabalho de assistência que dei a duas pesquisas, dois trabalhos de mestrado, a primeira em 2004, da UFBA, e a segunda da NYU em parceria com o ISC/UFBA. Nos dois casos se voltou o olhar para as comunidades, os problemas de exclusão e omissão do Estado foram abordados de modo bastante diferente: um cuidava da questão da violência como um problema de saúde pública e o outro da exclusão do mundo letrado e do acesso restrito à informação mediada em equipamentos culturais, principalmente a Biblioteca Pública. Nos dois casos, a inclusão cultural foi apontada como importante vetor de melhoria na qualidade de vida e como forma de redução das situações de risco (não como uma ação isolada). A biblioteca, entretanto é apontada como menina dos olhos, objeto de desejo. Motivos são muitos... as bibliotecas, e alguns bibliotecários, ainda acham que a Biblioteca de Babel existe e sua sede é uma torre de marfim. Outros, os não-profissionais, uma parcela significativa da população que inclui os setores medianos da sociedade e alguns nichos da academia, consideram um equipamento ultrapassado e que devem se configurar em "Centros Culturais", seguindo o modelo francês. A biblioteca é um espaço público de cultura que conserva maior fato de publicização que os demais equipamentos, contudo. O acervo é (ou deveria ser) livre, a mediaçãoo se dá apenas no momento de pesquisa e nas técnicas de recuperação e disseminação. Enquanto no teatro e no cinema, a fruição depende de recursos externos ao interlocutor (os públicos, em última instância), e no caso da biblioteca, o objeto mediático é o livro, e sua fruição depende do leitor. Não pretendo tratar da qualificação da leitura ou da interpretação do texto, mas sim do acesso. O livro é um objeto íntimo, é táctil, visual. A biblioteca é o espaço onde se pode literalmente mergulhar e buscar as nossas "vindicações". Esse fetiche com a bibliteca gera, obviamente, distorções absurdas, um culto excessivo ao equipamento e sua(s) obra(s) e o distanciamento do público. Por outro lado, as disputas intelectuais, acadêmicas e políticas sobre o que é cultura (do ponto de vista de uma política cultural governamental), geralmente promovem um cisma entre leitura, livro e biblioteca, e as demais manifestações e equipamentos que lhes dão suporte. Principalmente em Estados cujos órgãos administrativos ainda estão se definindo no campo da cultura e das artes. Luís Milanesi, amado por uns e odiado por outros, trouxe em seu livro "A Casa da Invenção", grande ensaio em formato de manual prático que combina ficção e teoria/técnica na gestão pública da cultura, a idéia que as bibliotecas são objeto de desejo, mas um desejo que acaba se sublimando em outro desejo: na criação de um centro cultural. Ora, sabe-se que os grandes "centros culturais", como é o caso da Alemanha, são as Bibliotecas Públicas (que são diferentes das Bibliotecas Universitárias, Bibliteocas Especializadas, Bibliotecas Escolares...). Mas ainda resiste a idéia de que Biblioteca Pública é um repositório de livros e que um centro cultural é dinâmico e (supostamente mais) vivo. Falácias, falácias... mas deixe, meu filho, são bobagens...
Sabemos que as bibliotecas eram símbolos de poder e status, haja vista que apenas duas fatias pequenas da sociedade as possuiam: o clero e a aristocracia. O domínio da leitura e da escrita eram restritos e vistos como "luxos desnecessários", mulheres não estudavam, por exemplo. O fato é que as biblitoecas eram bens privados, e a partir da Revolução Francesa, com o ideal de universalização da alfabetização, é que surge uma noção de equipamento público de mediação da informação e cultura. Então, na qualidade de equipamento público, além do acervo literário, o espaço abrigaria outras atividades relevantes e que deveriam contribuir e complementar o aprendizado e o lazer. Isso se acentuou bastante após a II Guerra. Claro, não vamos esquecer que o fato de existir um equipamento de acesso público não promove o acesso instantaneamente, e principalmente porque a cultura letrada (e o capital simbólico evocado pela cultura) é excludente. Logo, a leitura era lazer para intelectuais (enfim, pessoas ricas, a elite, a nata!) e chatisse para as famigeradas "massas". A biblioteca é um equipamento distante da realidade da maioria das pessoas, mas continua sendo um objeto de desejo, um direito. Este raciocínio se ampliou para a questão dos centros culturais, ainda mais se a localidade possuirm escasso número de espaços destinados à produção artístico-cultural. É muita "cultura" e pouco "lazer". É um direito, mas é ditante que parece que nem todos têm esse direito!
Desde 2004, quanto tomei contato com o mapeamento de biblitecas públicas e bibliotecas comunitárias (e, logo em seguida, com o de teatros), percebi que, na omissão do Poder Público e na eterna quimera do direito ao acesso às bibliotecas, um sem-número de pessoas fizeram a hora e não esperaram acontecer: criaram, com recursos próprios e articulados em um modelo de gestão baseado numa rede social, colaborativa, as suas próprias biliotecas. São espaços improvisados, nem sempre confortáveis, com acervos limitados, poucos equipamentos de apoio e dificuldades na prestação de serviços. Porém, conseguiram o que poucas Bibliotecas Públicas conseguiram: o apoio de uma comunidade, visibilidade e freqüência. Além de se configurar em aporte para outras ações (culturais ou não). É um espaço de discussão, de realização de eventos, de debates sobre tolerância religiosa ou de ordem da orientação sexual, identidade e gênero. Coisa que nem os amigos da Biblioteca Nacional conseguiu com uma adesão tão grande.
Passei o dia lá... um dia pra lá de agradável, por sinal. Clima bacana, pessoas muito gentis, muita disposição para o trabalho, paciência e muitos sonhos... ao mesmo tempo tudo muito simples. Li um breve histórico, conversei com algumas pessoas do bairro, adiantei muitas coisas e saí de lá com vontade de concluir o trabalho e realizar outros tantos!
No caminho de volta eu fiquei matutanto sobre o dia e me lembre de Calvino, nas cidades invisíveis... mesmo o maior imperador da História (Kublai Khan) não podia conhecer as cidades que dominava, e nem mesmo Marco Polo pode se reportar com sucesso. Só visitando e conhecendo a única coisa que pode diferenciar uma cidade da outra: as pessoas. E para além disso, as cidades são muitas cidades, o discurso é dissonante e cheio de disparidades, mas nos acostumamos a vê-las com olhos preguiçosos. O país também são muitos países, mas não apenas diante das diferenças de sotaques, de PIB ou produção agrícola, mas que existem Brasis que a TV não exibe, talvez até mesmo por desconhecimento, tratado como exótico, diferente... aquele país da "gente que faz", quando tanto coisa está envolvida. Existem Estados paralelos, mas não apenas porque existe um crime organizado, mas porque as comunidades se organizam (a maioria das vezes SEM o auxílio do crime) e ocupam os espaços vazios que o Poder Público ignora ou desconhece. Este Brasil vive e acontece em silêncio, porque só é lembrado em momentos de polarização (ora, "Os meninos do tráfico", ora, "minha periferia", da Regina Casé). Ele não te pede autorização para existir, e existe mesmo que você o negue, porque ignorá-lo é, de alguma forma, tentar uma anulação de sua existência. Essas pessoas consiguiram em pouco tempo muitas coisas que instituições grandes e o Poder Público não conseguiu. E quanto às bibliotecas, eles superarm o fetiche da leitura e da biblioteca e partem com os pés no chão. Eles têm suas próprias bibliotecas, seus museus, se articulam, realizam eventos e trazem benefícios para os moradores com recursos pífios! R$1.000,00 para uma associação dessas faz toda a diferença, enquanto para os cofres públicos não passa de centavos. Em poucos anos, a associação que visitei auxiliou alunos secundaristas, universitários, inscritos em concurso, se profissionalizou (dentro do possível), teceu redes de parceria... e o melhor: sem aquele ranso das instituições oficiais da cultura, praticantes da pedagogia da libertação que subjulga o Outro... os exemplos "Quanto Vale ou é por quilo" e aqueles jovens ativistas expostos em "Tropa de Elite" são bem ilustrativos, embora tendenciosos. Mas existe, sim, uma indústria perversa de "projetos" (coloquei entre aspas para sinalizar um tom irônico) culturais e sociais... enquanto os realizadores deles andam de carros importados, a comunidade vive à míngua com migalhas.
Espero poder contribuir com eles, mas eles me deram a maior contribuição: confirmaram algumas idéias minhas e reforçaram meus ideais.
Bom São João (porque alguém deseja isso, mesmo? "Feliz Natal" eu até me esforço pra entender.... deveriam dizer: "Um engov antes, outro depois" ou "não abuse das drogas" ou "cuidado com as espadas" ou sei lá... cansei!)
O que nós temos de Kublai Khan?
sábado, junho 21, 2008
Elocubrado por Lucas às 3:32 AM
Marcadores: cultura, textos escritos nas madrugadas sem dormir
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