Sete Sóis, Sete Luas: Blimunda, Saramago e Portugal

quinta-feira, setembro 14, 2006

Pelas mãos de alice...

Blimunda, para quem não a conhece, é uma das mais famosas e emblemáticas personagens criada por José Saramago e protagonista do romance Memorial do Convento. Blimunda possuía o dom de ver o que estava encerrado dentro das pessoas, ela via as pessoas por dentro. Contudo era seu poder de ver as vontades que as pessoas trazem dentro si presas dentro de nuvens fechadas que conduz a história e que encanta o leitor.
A história do romance descreve, através dediversas alegorias, Portugal do século XVIII, o Império Decadente, mal administrado, e que apesar de todas as riquezas extraídas das colônias apresentava um quadro social conturbado, cidades sujas, sobretudo Lisboa, violentas, sem lei e um coroa que desconhecia ou ignorava essa situação, além de um povo que, por sua vez, era omisso e acomodado e se manteve sob-controle.
Antes de prosseguir e até chegar em Blimunda - o tema de hoje - é preciso que eu faça uma breve apresentação do contexto português que é o background do romance de Saramago.
Quando voltamos os olhos para a Península Ibérica e observemos com calma o nosso "país-irmão" que há mais de 500 anos, por acaso, nos achou (e não descobriu como se canta em verso e prosa) nos deparamos com um país de excentricidades, anomalias e contrastes, um país em vigora a regra do jeitinho.
Atualmente um dos principais problemas enfrentados pelos portugueses está relacionado ao ethos. Primeiramente porque não há um lugar que este país possa ocupar, conseqüência direta da imagem que os portugueses têm de si próprios e que o resto do mundo, principalmente os países da União Européia têm deles. Não se conhece a identidade portuguesa, há, ao invés disso, uma série de brumas e uma dificuldade na compreensão, não se sabe que país é aquele, porém, do outro lado, o português adota para si uma identidade toda embasada num passado (abstrato) de glória e não vê nisso problema algum - ele se conhece muito bem.
Nesse sentido este conflito acaba criando uma situação muito peculiar (o que é muito normal quando se refere à Portugal) que é a da hiperidentidade portuguesa, isto é, a identidade em excesso, a identidade fechada e (muito) bem definida, que não suscita problemas ou conflitos, não ha inquietação nem busca por soluções. Os próprios cidadãos construíram e ajudam a manter uma imagem de um país que vive à sombra do antigo império mercantilista, das quintas, das sardinhas, dos azeites, dos azuleijos, do fado, do vinho do porto, das grandes navegações, e, principalmente (e o mais preocupante) do sonho, da ilusão e do devaneio, o país dos mitos, das glórias, das derrotas e dos azares e frustrações históricas - a perda de reis, o domínio espanhol, a perda das colônias e, por fim a ditadura salazarista.
Quanto aos azáres, são eles, no imaginário do povo português e de teóricos como Eduardo Lourenço, autor de Nós e a Europa, os responsáveis pela atual e complicada situação social portuguesa.
Em segundo lugar, trata-se aqui de uma nação que define-se a si própria como semi-periférica, ampliando o problema de encontrar e ocupar um lugar de fala, um ethos. Ora, a priori, ou um país é centro ou ele é periférico, não havendo portanto um meio-termo, mesmo que no periférico haja, ainda, aquela ressalva eufemista de "país [periférico] em desenvolvimento". No caso específico de Portugal, a condição de "semi-periferia" se dá prioritariamente por sua localização geográfica, e também das inúmeras ajudas que o país recebe da União Européia. Há, de fato características de centro, como o elevado nível de consumo e baixíssimas taxas de desemprego, entretanto não se verifica a existência de um Estado de Providência (Wellfaire State), índices de violência elevados, e, apesar do nível de desemprego ser um dos menores, se não o menor, em toda Europa, os empregos são, na verdade, sub-empregos, ou seja, ganha-se muito pouco. Então, como um país cuja maioria dos empregos são na verdade sub-empregos, cujos índices de desenvolvimento humano mínimos e as taxas de migração elevadas (cerca de 12 a 15 milhões de portugueses vivem fora de portugal e mais de 11 milhões de estrangeiros vivem em Portugal, principalmente provenientes das ex-colônias), todas características de países periféricos, pode consumir como um país central como Inglaterra, França e Estados Unidos? Este é o primeiro contraste.
Percebe-se que a situação de Portugal é aquela que Bhabha conceitua como entre-lugar, o lugar do deslizante e marginal, o Outro, o desconhecido. O entre-lugar, ethos português, não é reconhecido pelo sistema mundial, entendido aqui como o mundo neoliberal e globalizado, porque a semi-periferia não existe de fato, portanto sua participação não é permitida. O que representa mais um entrave no seu possível desenvolvimento.
Na contra-mão desse raciocínio, o país reivindica um espaço, antes de tudo, privilegiado e não aceita o não-reconhecimento de sua gloriosa história como fator determinante para integrar o sistema mundial. O país está à espera de um grande acontecimento que devolva aos portugueses o posto de grande potência mundial. O povo português ainda espera um futuro glorioso como fora seu passado glorioso, de grandes feitos, espera um lugar que é seu por direito, o centro do sistema mundial.
O país foi capaz de produzir o melhor, mais bem elaborado e justo código de leis da Europa, que nunca foi aplicado. Os motivos são muitos, desde uma ausência de cultura democrática e republicana conseqüênte de uma História conduzida por regimes autoritários (desde as aristocracias à ditadura de Salazar), a não-indutrialização e uma burguesia constituída por ruralistas (como é o caso do Brasil, por exemplo) e que não estava, em princípio, desfavorecida pela classe aristocrática, portanto não havia a necessidade de questionar ou de buscar mudanças. Daí, talvez, o fato de que até hoje o país seja essencialmente rural e patriarcal. A própria conquista da democracia se deu por imposição, basta observar o modo de como aconteceu a Revolução dos Cravos, em 1974, feita por militares, um golpe do próprio golpe, e que conquistou muito pouco em se tratando de valores democráticos.
Em Nós e a Europa, Lourenço justifica toda a situação portuguesa atual como produto do revés histórico e argumenta que a perda das colônias não representou um problema porque a colonização buscou, desde o princípo, preparar e capacitar ou civilizar aqueles povos. Nesse sentido se justapõe o mito que acaba duplicado, daí a hiperidentidade.
Em geral, conforme as 11 teses que Boaventura Santos sugere em Pelas mãos de Alice, não por acaso o título porque ele sugere em primeiro lugar a perda da inocência e o prostar-se diante do espelho e reconhecer-se a si próprio, isso se dá por diversos motivos mas que o principal problema se dá não pelos azares históricos, mas pela má gestão do Estado. Cada uma das 11 teses refuta os pressupostos de Lourenço, mas o principal e conflitante contraste contestado por Santos é que, em Portugal, as ciências sociais, que devem dentre outras coisas compreender, ou auxiliar na compreensão, da dinâmica social, chegaram tardiamente, e de maneira inversa: as ciências socias começam pela psicanálise, a mais recente de todas. Portanto, em primeiro lugar não há o desenvolvimento de um método científico para as ciências sociais, porém o ponto central é que é impossível compreender uma nação a partir de um pressuposto psicanalítico, fundamentado no incosciente, além de ser impossível que se analise a si próprio, é preciso um olhar estrangeiro, o que mais uma vez duplica o mito, porque não há distanciamento.
O que Santos discorre em seutexto é que justamente, o país não fora injustiçado e que o país não está doente, não precisa ser tratado, mas enfrentar os problemas e abandonar um passado de glória que nunca existiu, o país não é ingorado pela Europa na contemporaneidade, mas desde o período assimilado pelos portugueses como áureo.
É justamente nesse viés que Saramago desenvolve Memorial do Convento. O romance é atemporal, embora saiba-se que o tempo, seja ele numa narrativa ou no dito "mundo real" é sempre bergsoniano, isto é, sempre uma contrução, é o tempo da sensação, o tempo pessoal e íntimo, em última instância. Atemporal porque mesmo se passando no século XVIII a realidade apresentada é da alta idade média, período da inquisição, do maior omínio da Igreja e de um estado dominado pelas "trevas". A história conta a construção do Convento de Mafra, contrapondo a rotina da coroa a da plebe, os sujeitos marginais à História, reprentada po Baltazar Sete-Sóis, Blimunda Sete-Luas e do Pe. Lourenço (referência de Saramago ao teórico Eduardo Lourenço), este último apesar de padre é cientista e inventor, além de quê ele abençoa a união de Baltazar e Blimunda, completamente fora dos padrões e das doutrinas da Igreja, portanto os três são sujeitos da contravenção. Lourenço era conhecido como "Padre Voador" porque ele inventara uma pequena máquina de voar e construía em segredo, com o apoio de el-rei, uma pássarola.
Para conseguir tal feito, o padre conta com a ajuda de Blimunda e Baltazar, todos sujeitos da contravenção e situados à margem da sociedade, completamente fora dos padrões comportamentais vigentes. É com o dom de Blimunda (o de ver por entre e por das coisas) e com a força de Baltazar que é construída a passárola.
O renomado e premiado autor "fez as pazes" com Portugal com este romance, hostilizado durante a ditadura salarista, esteve "omisso" até ser ele próprio uma das "vítimas do sistema" e acabar exilado do país.
A intensa crítica dos problemas portugueses e uma linha de raciocínio que converge com a de Boaventura Santos (de que os problemas, em Portugal, não são conseqüência de azáres históricos, mas de uma conturbada gestão do patrimônio do Estado). Percebe-se também o quanto estes problemas de ordem econômica incidem diretamente sobre a configuração das identidades, principal problema português: a falta de reconhecimento ou a duplicação dos mitos fundadores da nação.
Para maiores detalhes, em breve posto mais uma vez o artigo que escrevi sobre o assunto, com mais calma e mais detalhado. Até breve, meus caros leitores inisíveis.

Lucas